Universo materno

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Reuniões de Família

Por Rosely Sayão


Neste dia e nos próximos, milhares de pessoas se reúnem com suas famílias, seja em torno do motivo religioso ou do sociocultural. O costume das reuniões familiares regulares tem diminuído consideravelmente e, por isso, tais reuniões podem ser muito educativas para crianças e jovens.


Em primeiro lugar, muitos deles reconsideram o conceito que têm de família. Como esta tem mudado muito, apenas o núcleo pai-mãe-filhos tem sido considerado família. Em datas como estas a presença de outros parentes é ainda comum e os mais novos têm então a oportunidade de observar novas identidades, comparar estilos e identificar diferenças de atitudes frente às questões da vida e dos afetos, entre outras coisas. E mais: essas são grandes oportunidades que os mais novos têm de conhecer com mais intimidade as tradições da família à qual pertencem.


Com a força que o foco na formação dos filhos para o futuro tem ganhado, muitas crianças simplesmente perdem oportunidades de conhecer melhor seu grupo de pertencimento e, portanto, sua matriz de identidade e sua história. De que modo viveram seus parentes no passado, como começaram as famílias materna e paterna, quantos parentes de segundo ou terceiro grau são considerados, pela família, heróis virtuosos por terem enfrentado com coragem as vicissitudes da vida? As crianças, em geral, desconhecem tais fatos e nem podem se orgulhar de pertencer ao mesmo grupo que eles.


Por outro lado, em toda família há parentes que vivem à margem dela por terem adotado outras maneiras de viver, outros valores e portanto se afastado, muitas vezes por exclusão, do grupo original. Nessas reuniões sempre há menções a esses parentes, mesmo que com críticas mais ou menos veladas, e os mais novos têm então a chance de entender que o fato de pertencer a uma família não significa, fatalmente, ter seu destino traçado. Muitas pessoas, excluídas ou afastadas por opção, constroem famílias de afinidade como grupos de amigos, por exemplo. É importante que crianças e jovens saibam que essa possibilidade existe na maturidade.


E o que dizer, então, dos parentes que se excedem na ingestão de bebidas alcoólicas e que se tornam inconvenientes nas brincadeiras ou na exposição dos segredos familiares, das desavenças não superadas, das mágoas e dos conflitos não resolvidos entre pessoas tão próximas? Essa é uma boa ocasião para os mais novos perceberem que o amor caminha lado a lado com o ódio e que um sentimento não anula nem destrói o outro. Eles podem descobrir que o oposto do amor é a indiferença e não o ódio e isso é importante para a busca do equilíbrio das próprias emoções e da imagem que têm de si.


Finalmente, é raro que nessas reuniões não se fale dos fracassos e êxitos familiares, das disputas, das passagens cômicas que alguns personagens protagonizaram, das frustrações e sonhos ainda perseguidos, do passado e do que se deseja para o futuro. Parentes que já morreram ou que se afastaram são lembrados com emoções diversas, com saudades, e se fazem presentes na ausência. Em torno da mesa e/ou dos presentes, costumes são resgatados e apresentados aos mais novos.


Isso é família. A verdadeira, a real, e não a dos anúncios de margarina, como costuma dizer uma amiga. É essa família que importa à criança e ao adolescente conhecerem, descobrirem, aprenderem a lidar. É a ela que pertencem.


Conheço pais que não comparecem às reuniões dessas datas justamente para preservar os filhos de tantos acontecimentos previstos e imprevistos. Eles não sabem de quanta coisa importante privam os filhos. Afinal, os modelos familiares que a criança e o adolescente apreendem podem funcionar também como contra exemplo em suas vidas.

Fonte: http://blogdaroselysayao.blog.uol.com.br/arch2008-12-16_2008-12-31.html

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Sexualidade

A propósito do assunto anterior, lembrei de um trecho de Foucault no livro "Microfísica do Poder":

Não quero fazer a crônica dos comportamentos sexuais através das épocas e das civilizações. Quero seguir um fio muito mais tênue: o fio que, em nossas sociedades, durante tantos séculos ligou o sexo e a procura da verdade.(...)como se explica que, em uma sociedade como a nossa, a sexualidade não seja simplesmente aquilo que permita a reprodução da espécie, da família, dos indivíduos? Não seja simplesmente alguma coisa que dê prazer e gozo? Como se explica que ela tenha sido considerada como o lugar privilegiado em que nossa verdade profunda é lida, é dita? Pois o essencial é que, a partir do cristianismo, o Ocidente não parou de dizer "Para saber quem és, conheça teu sexo". O sexo sempre foi o núcleo onde se aloja, juntamente com o devir de nossa espécie, nossa verdade de sujeito humano." ("Não ao Sexo Rei", em Microfísica do Poder).

Levar uma menina ao GO?


Esse foi mais um assunto que surgiu um dia desses na comunidade Pediatria Radical. Mais um daqueles tópicos bombados (centenas de posts), com alguns trechos bem polêmicos, mas cheio de idéias interessantes.

Esse foi o diálogo que me chamou bastante atenção:

Participante 1 diz: Acho a ida ao GO invasiva demais para uma mulher.

Participante 2 diz:Mas ñ deveria ser invasiva...Deveria ser natural...Como ir ao dentista por exemplo...Infelizmente nosso corpo e sexualidade ainda é um tabu.


A primeira questão que me apareceu foi: desde quando o discurso médico sobre a sexualidade feminina é livre de tabus??

Eu não entendo porque ir ao ginecologista é sinal de que a pessoa lida bem com sua própria sexualidade. Até porque a sexualidade humana tem muito pouco a ver com a intervenção médica no corpo. A sexualidade humana implica uma dimensão imaginária e fantasmática que escapa de qualquer controle tecnicista e do discurso positivo da ciência.O discurso médico, carne e unha com o discurso da igreja, é o discurso mais cheio de tabus. Tanto que tenta reduzir toda a sexualidade ao orgânico/fisiológico, e equipara o corpo da mulher a uma máquina para, enfim, dominar e exercer sobre ele seus "podres poderes". Uma mulher que vai buscar verdade sobre sua sexualidade dentro de um consultório ginecológico, e acredita piamente que ele está falando dela quando descreve o funcionamento mecânico dos órgãos, ela estará bem equivocada.Um amigo meu, médico, falava que a sexualidade no discurso médico só pode ser vista pelo campo fenestrado. Traduz bem a visão limitada que o discurso médico tradicional tem sobre o assunto.

Salvo questões orgânicas que, até onde pude me informar, raramente são causas de anorgasmia, o orgasmo não se aprende dentro do consultório do GO. O orgasmo é resultado do conhecimento do próprio corpo, dos limites, dos desejos, da sua anatomia, que está muito mais na "cabeça" da mulher do que num livro de anatomia humana.

A minha pontuação é exatamente sobre sua (Participante 2) fala quando aponta o dispositivo médico como espaço ideal para mulher discutir e aprender sobre sua sexualidade. Muito pelo contrário, o discurso médico é castrador. Não entende nada do feminino. É um discurso machista que procura calar a sexualidade feminina. Por isso que não se aprende nada dentro de um consultório.Veja que estou falando do discurso médico e não do médico, que pode ou não reproduzir esse discurso, que pode estar mais ou menos marcado por ele.Aliás, de uma forma geral, a hegemonia do discurso positivo da ciência sobre o corpo visa exatamente dominar a única dimensão da nossa existência que poderíamos ser senhores de nós mesmos. Isso vale para homens e mulheres.

É uma questão de ponto de vista. Não acho que falta de orgasmo tenha a ver com educação sexual. Educar a sexualidade a ter orgasmo?? A educação sexual serve para outra coisa, mas não para se ter orgasmo. Serve para controle de DSTs, de natalidade, planejamento familiar, etc.Tudo lugar onde existe um discurso positivista sobre a sexualidade é anorgasmático. A sexualidade, no sentindo pleno da palavra, se aprende vivenciando, e não tendo aulas de anatomia, neurofisiologia, etc., etc.A sexualidade tem a ver com a representação que fazemos do nosso corpo.

O discurso academicamente organizado/cultura e a sexualidade/natureza são duas dimensões em eterno conflito. Hoje em dia a sexualidade se aprende em livros, em aulas de educação sexual com autoridades diversas (educadores, psicólogos, médicos). O que vemos hoje é resultado de anos de reverência à tekné. O engraçado é perceber que, a fim de exercer poder sobre as individualidades, a sanha da natureza humana, a palavra tekné, que também se referia às técnicas mágicas e religiosas, passou a ser tomada apenas na sua dimensão racional.

Antigamente, a mulher aprendia sobre sexualidade observando a natureza e seus rituais. Hoje, é preciso do discurso psi, discurso médico, discurso feminista, enfim, é preciso de todo um saber academicamente organizado para ensinar-lhe as verdades sobre seu corpo.Uma menina deveria aprender sobre sexualidade observando seus pares e experimentando seu próprio corpo. Toda mãe deveria passar por um processo de reconhecimento do seu próprio corpo antes de se colocar inevitavelmente como modelo de feminilidade para suas filhas. Assim como modelo de mulheres para seus filhos. Não estou colocando mais uma culpa na longa série de culpas da mãe. Mas, nós sabemos o quanto as mulheres se tornaram vítimas, para serem controladas, do discurso machista.Preventivo x Medicina Preventiva A medicina preventiva se faz na esfera doméstica, utilizando os elementos da natureza. O ar livre, o sol, a água, os alimentos cuidadosamente escolhidos, etc. A medicina preventiva que se faz com o auxílio da medicina científica, com seu saber acadêmico e sua tecnologia, para mim, não tem nada de preventivo.Durante quantos anos da existência humana, corrimentos vaginais foram curados por elementos da natureza (banhos de assento, etc). Aos poucos, fomos perdendo essa saber ancestral para assumir, iludidos pelas garantias, a supremacia do conhecimento médico-científico.

A manipulação do corpo de crianças incapazes de simbolizar aquela experiência deve ter alguma repercussão psíquica. Levar uma menina ao médico também porque menstruou acho desnecessário. Menstruação não é doença.

Talvez, o único argumento a favor de levar ao médico após a menstruação é o risco de uma gravidez na adolescência, caso os pais percebam a chance em potencial dessa menina iniciar sua vida sexual a qualquer momento, e queiram orientar em relação aos métodos contraceptivos. Mesmo assim, a menina deve consentir. Agora, eu pergunto porque não se leva um menino na flor do seu amadurecimento sexual a um andrologista para checar se seu aparelho genital é realmente funcional e livre de doenças??!! Não é intrigante como a família e a sociedade incentivam os meninos a aprender em experimentando, enquanto as meninas precisam do saber científico para saber que é possível ter um orgasmo, que ele existe?



Leia mais sobre o assunto:

Quando as meninas devem fazer a primeira consulta ginecológica?

A primeira consulta ginecológica.



sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A família segundo Roudinesco

Una Família, de Botero



A cada livro que publica, Elizabeth Roudinesco se firma como uma atenta observadora da cena psicanalítica. Conjuga bem seus recursos de historiadora com o saber inaugurado por Freud, produzindo obras de grande interesse, que sua habilidade literária coloca ao alcance de um público mais vasto.

Esse seu "A família em desordem", lançado ano passado na França e agora aqui traduzido, é uma boa mostra disso.

Os avanços da tecno-ciência e dos costumes tornaram possíveis mudanças antes impensáveis no processo da reprodução humana. Lembremos os métodos anticoncepcionais - desde os seculares contraceptivos e o coitus interruptus, a prática do aborto, o controle de natalidade pela tabela Ogino-Knaus, as pílulas anticoncepcionais, o DIU, a inseminação artificial, a inseminação ín vitro com subseqüente implantação intra-uterina, a doação de esperma ou de óvulos, as barrigas de aluguel até, finalmente, a clonagem.

Essas técnicas provocaram uma revolução no próprio conceito de família, se pensarmos que por esse nome designamos a união, reconhecida e apoiada pela sociedade, entre um homem e uma mulher com fins de criar e manter os filhos.

Além dessas inovações tecno-científicas, os próprios costumes também mudaram quanto à família. Pouco resta da antiga família patriarcal, imutável, regida por um pai autoritário, quanto olhamos para as famílias de hoje - rompidas e recompostas muitas vezes. Mais ainda, cortando todos os laços com os costumes anteriores, pares homossexuais passaram a pleitear a adoção ou mesmo a paternidade ou maternidade, usando os novos recursos que prescindem da prática natural do coito entre homem e mulher.

Como ficam, dentro dessa nova realidade os papeis tradicionais de pai e mãe, de homem e mulher, a necessária gestão da autoridade na educação das novas gerações?

São essas importantes e instigantes questões que Roudinesco tenta responder em seu livro. O disparador de suas reflexões é a questão colocada pelo "desejo de família" expresso pelos homossexuais, coisa que considera surpreendente, quando lembra que até bem recentemente - pelo menos na França - a postura dos homossexuais era a de pleitear um "direito à diferença", quando contestavam e rejeitavam a família, considerada como o funesto lugar da opressão patriarcal, impedidora da liberdade sexual. A nova moral por eles apresentada é a da busca da normatização, uma forte vontade de integração, abandonada que fica a antiga postura que proclamava uma ruptura com a ordem vigente.

Para responder a essas questões, Roudinesco vai mesclar uma grande massa de informações derivadas da história, da antropologia e da psicanálise, de onde pinçarei alguns pontos referenciais.

Diz que Levy-Strauss estabeleceu que a família é encontrada em todas as sociedades humanas, organizando-se dentro das duas grandes ordens do biológico (diferença sexual) e do simbólico (proibição do incesto e outros interditos). Se até o finado da Idade Média ela era entendida em seu sentido mais extensivo, a família nuclear, tal como hoje a concebemos (pai, mãe, filhos) se impõe entre os Séculos XVI e XVIII. A família passou por três fases evolutivas: a primeira dita "tradicional", assegurava a transmissão do patrimônio e era regida pelo poder do pai, transposição direta, para o seio do privado, do direito divino dos reis reconhecido publicamente no regime da monarquia, estabelecida num mundo imutável; a segunda, fase "moderna", é regida por uma lógica afetiva, romântica, onde o casal se escolhe sem a interferência dos pais, procurando uma satisfação amorosa e sentimental, sendo que o poder e o direito sobre os filhos é dividido entre os pais e o Estado e/ ou entre pais e mães. Finalmente, a terceira, dita "contemporânea ou pós-moderna", aonde a transmissão da autoridade vai ficando cada vez mais complexa em função das rupturas e recomposições que a família vai sofrendo.

No mundo ocidental, a família "tradicional", submetida ao poder paterno, manteve-se por séculos (lembre-se às leis romanas sobre o pátrio poder, por exemplo), até o grande abalo da Revolução Francesa, que, ao propor um mundo laico, atinge a até então inatacável figura de Deus Pai e seus sucedâneos no poder estatal, os reis, que são dessacralizados e mesmo destituídos, enfraquecendo conseqüentemente seu equivalente no seio dos lares, os pais. Esse modelo familiar desmorona definitivamente no final do Século XIX.

A decadência do patriarcado causou na Europa um grande temor do feminino, antevia-se uma emasculação e uma feminização da sociedade. Produziu-se uma ideologia que satanizava a mulher, vista como fonte do caos e da destruição social, como a obra de Johann Jakob Bachofen bem ilustra.

É nesse clima que Freud pode produzir a psicanálise. Se na sociedade em geral, vivia-se a falência do poder paterno, Freud vem propor uma teoria do psiquismo humano na qual o assassinato do pai - realizado ou fantasiado, desejado - terá decisiva importância.

Em "Totem e Tabu" o assassinato do pai é um ato necessário, fundador da civilização, ato que instaura a lei que nos separa do mundo da natureza e nos introduz na cultura, o que possibilita a internalização dos interditos paternos. Vê-se como é complexa a proposta de Freud, pois ao mesmo tempo em que diz ser necessário o assassinato do pai, afirma que também é necessária sua permanência, embora que noutra condição - como a lei internalizada pelos filhos.

Como diz Roudinesco, Freud vai "inventar a família edipiana". De que forma? Vai ilustrar a complexa relação entre filho e pai com a figura trágica de Édipo.

Sabemos que as três tragédias de Sófocles em torno de Édipo - "Édipo Rei", "Édipo em Colona" e "Antígona" - são os momentos finais de uma historia mítica maior, a da trágica e amaldiçoada família dos Labdácidas.

Esta família foi fundada por Cadmo, que gerou Polidoro e este a Labdaco (o "manco"), que morreu quando Laio, seu filho, tinha um ano. Criado pelo Rei Pélops, Laio se comporta de forma indigna, ingrata, `claudicante' , com seu hospedeiro, ao violar homossexualmente Crisipo, seu filho, o que o leva ao suicídio. Como vingança, Pélops amaldiçoa a raça dos Labdácidas, condenando-a a extinção. Laio foge e casa com Jocasta, também de sua própria família. Deles nasce Édipo, cuja história todos conhecemos, e que gerará Etéocles, Polinice, Antígona e Ismene.
Conhecendo a linhagem familiar, vemos que Édipo nasce amaldiçoado, no seio de uma família condenada à destruição. Para Sófocles, Édipo de nada é culpado, é a vítima do destino.

Freud vai ignorar toda a história pregressa da família de Édipo e centrar-se no assassinato do pai e no incesto com a mãe - representantes dos desejos fundantes e reprimidos do inconsciente. "Pouco importa a mensagem de Sófocles: o que conta agora para Freud é a história do filho culpado de desejar sua mãe e de querer assassinar seu pai... Édipo será, portanto culpado não de ter cometido um assassinato, mas de ser um sujeito culpado de desejar sua mãe" - diz Roudinesco.

Esse recorte permite a Freud a criação de sua teorização do inconsciente, centrada no desejo incestuosa do filho frente à mãe. Assim, institui a abordagem clássica da terapia psicanalítica, que é a individual. Não se detém suficientemente, em minha opinião, sobre a realidade do inconsciente dos pais e, de maneira mais larga, de toda a família, como definitivos na constituição do sujeito.

Ou seja, Freud não elaborou um dispositivo terapêutico e teórico que incluíssem toda a família como objeto de observação psicanalítica. É diferente recortar o desejo de Édipo, vê-lo como o produto autônomo de um indivíduo - e aí o postulado da "pulsão" abre caminho para tanto - de entendê-lo dentro de um continuum familiar amaldiçoado, destinado à destruição.

Uma coisa é ver Édipo sozinho, outra é vê-lo como um membro dos Labdácidas. Se o víssemos desse segundo ponto de vista, entenderíamos todo o peso simbólico de seus antepassados e a forma como influenciaram decisivamente em sua vida. Afinal, Édipo, que significa "o de pés inchados" é um dos Labdácidas, a família dos "mancos". Nesse sentido, discordo quando Roudinesco diz que Freud "inventa" uma "família edipiana", pois o que está em jogo não é propriamente o dinamismo inconsciente de uma família e sim de um indivíduo, um único membro da família.

Esse déficit teórico freudiano é suplementado por desenvolvimentos atuais que se preocupam com os desejos inconscientes da mãe e do pai frente ao filho, tentam entender o lugar que o filho vem ocupar em seus mundos internos e a forma como tais desejos vão ser assimilados e internalizados pelos filhos, como sugere Laplanche com seu conceito de "metábole". Além do mais, saindo do enquadre terápico individual, abrem-se novas possibilidades de pensar analiticamente a família, com seus segredos, seus não-ditos, suas vergonhas, suas feridas narcísicas e suas maldições (Kaës).

A derrocada da figura do pai e o temor do feminino decorrente da crescente presença da mulher no espaço público tem um subproduto no corpo teórico da psicanálise: a teorização kleiniana, que, distanciando-se de maneira radical de Freud, centra-se inteiramente na figura materna, objeto único da pulsão e da fantasia do bebê, que a infla de tal forma que a faz perder toda realidade concreta. "Foi preciso esperar as contribuições de Donald Woods Winnicott sobre a mãe suficientemente boa (good-enough mother) e `extremosa comum' (ordinary devoted mother) para corrigir os excessos dessas clivagens maniqueístas que resultavam numa visão perversa ou psicótica das relações de parentesco"- diz Roudinesco.

Efetivamente, com os novos direitos decorrentes da luta feminista, as mulheres passaram a exercer um poder e uma presença muito mais forte na sociedade e na família, havendo mesmo nesta uma maternalização significativa.

Nesse contexto, estudos tornaram possível separar o "feminino" do "materno"; foi possível discriminar "sexo" (biológico) e "gênero" (costumes sociais). E se evidenciou algo antes totalmente reprimido, que era a questão da sexualidade feminina. Frente a essa questão, Freud tem sido sempre mal compreendido, pois ao postular o conceito de "complexo de castração" aponta para a incompletude de ambos os sexos e a fantasia narcísica de uma totalidade impossível.

Coincide com a diluição da figura paterna e fortalecimento da presença do feminino e do materno o aparecimento das novas conquistas da tecno-ciência médica. Elas tornaram possível o abandono da ordem procriadora, antiga base da família, fazendo surgir novas formas de parentalidade (o próprio termo já é uma novidade) antes impensáveis.

A total desconstrução do conceito de família decorrente da tecno-ciência levanta inúmeros problemas éticos, políticos, jurídicos, além daqueles da ordem da subjetividade.

Teria havido uma desumanização de processos tão fundamentais para a humanidade quanto à geração e criação de novos seres humanos? Teria o "zeitgeist'" deixado o avatar edipiano para assumir a feição narcísica? Como serão as famílias do futuro?

As possibilidades abertas pela tecno-ciência no que diz respeito à concepção de novas vidas são inusitadas e ainda é cedo para avaliarmos seus resultados. Mas devemos refletir sobre a necessidade de parâmetros éticos para a ciência. Ela não deveria ser deixada a seu próprio desenvolvimento interno, na medida em que ela pode criar situações intrinsecamente más e perversas, como a execução em massa de seres humanos seguindo modelos da linha de produção industrial, como nos campos de extermínio nazistas.

Retomando aquilo que foi o disparador para esse livro, a questão da paternidade de casais homossexuais, Roudinesco toma uma posição cuidadosa. Não endossa a maciça reprovação expressa por vários importantes psicanalistas franceses, mas também não nega a difícil situação desses casais homossexuais e de seus filhos. Ao citar os impressionantes relatos feitos por Leonard Shengold de abusos praticados em seus filhos por pais e mães de famílias "normais'", ela lembra uma obviedade que às vezes precisa ser repetida: ter pais heterossexuais não é garantia de ausência de sofrimento e traumas. Afinal de contas, até o presente, toda a louca humanidade assim foi procriada...

Roudinesco encerra com um certo otimismo, ao afirmar que a família humana se reinventa permanentemente, mantendo-se desde os inícios dos tempos, como uma instituição insubstituível para nossa própria constituição de sujeitos humanos.


Resenha do livro "A Família em desordem" de Elizabeth Roudinesco , Jorge Zahar Editor - Rio de Janeiro - 2003
por
Dr.Sérgio Telles setelles@uol.com.brPsicanalista do Departamento de Psicanálise de Instituto Sedes Sapientiae Escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO (1992 - Imago - Rio)

Fase Oral? Fase Anal? Que fase?


Por Adalene Sales


Uma das preocupações de Freud, no fim da sua vida, era o alcance que a Psicanálise viria a ter no futuro. Uma preocupação paradoxal porque ao mesmo tempo que ansiava para que a Psicanálise fosse reconhecida (teórica e clinicamente), ele temia a Psicanálise Selvagem .
Ele jamais imaginou o estado atual da difusão dos conceitos da Psicanálise. Com uma mãozinha da tecnologia, cada vez mais as pessoas têm acesso à teoria.


Certo dia, uma participante da comunidade Pediatria Radical criou um tópico para perguntar quando inicia a fase anal. Descreve o comportamento da filha de sujar as mãos com o cocô, e pergunta: é só uma curiosidade? Ou já é início da transição entre a fase oral e anal?


A princípio, compreender esses comportamentos infantis como naturais e reconhecê-los como etapas do processo de desenvolvimento é de imensa utilidade: as mães ficam mais tranqüilas sem achar que está diante de um distúrbio de comportamento, e os filhos mais livres para prosseguir no seu ritmo. Mas, a pergunta que sempre me ocorre diante dessa situação de localizar o momento do filho dentro das fases psicossexuais é: qual a utilidade prática disso?

O risco dessa interpretação da fases psicossexuais é desnaturalizar a relação da mãe com o filho. Sou a favor do agir naturalmente. Quando o adulto quer controlar, saber tudo, ajudar, pemitir, facilitar, enfim, se meter, acaba criando problemas desnecessários.

Punir as crianças: uma dor de cabeça para os pais




Certos adultos confundem maus tratos com castigo e não ousam punir os seus filhos, considera Patrice Huerre, médico-chefe do serviço de psiquiatria da criança e do adolescente no hospital de Antony Hauts-de-Seine, região parisiense). “Uma punição ocorre para sinalizar o fato de que os limites foram ultrapassados; em relação a isso, um bom número de profissionais da medicina, entre os quais eu me incluo, está empenhado em lembrar aos pais de que em caso de transgressão da autoridade eles têm o direito e o dever de castigar os seus filhos”, diz.

Contudo, aquilo que pode parecer uma evidência está provocando asco numa geração inteira de pais que estão escaldados pelo autoritarismo dos seus próprios genitores, ou que estão tentados a acreditar que uma criança amada é naturalmente boa. O fato de puni-la evidencia então os erros da sua própria educação e gera neles um sentimento de fracasso e de culpa.
“Muitos foram aqueles que acreditaram que ao empenharem muito amor e ao oferecerem explicações, passaria a ser possível controlar certos instintos das crianças”, explica Didier Pleux, um psicólogo clínico. “Mas, desta forma, em vez de desenvolver neles o sentimento do outro, eles desenvolveram o seu egocentrismo”.

Regras definidas de antemão

Com isso, os aprendizes de tirano foram se tornando cada vez mais numerosos. Eles protestam sob qualquer pretexto, quando vivenciam toda e qualquer frustração, por menor que ela seja, e transgridem alegremente as regras sob os olhares constrangidos dos adultos. Mas, de quais maneiras, e dentro de quais circunstâncias uma criança deve ser castigada? Algumas precauções prévias condicionam as virtudes educativas da punição.
Princípio número um: “As regras do jogo devem ser definidas de antemão, por que não em família?”, considera o doutor Huerre. “Assim, caso ela desobedecer, a criança já sabe o que poderá acontecer com ela”.

Em segundo lugar, é importante que os pais não ameacem com punições que, na hora h, eles não serão capazes de infligir. Do tipo: “você não vai ganhar nenhum presente no Natal”, ou ainda, “você ficará sem poder assistir à televisão durante seis meses”. Conforme explica o psicólogo Didier Pleux, “os pais devem optar por impor castigos apropriados proporcionais, os quais, para as crianças, devem despontar de preferência como sendo conseqüências dos seus atos, e nem tanto como punições”. Em outras palavras, para o pequeno, a sanção não deve ser percebida como uma injustiça. Além disso, é importante evitar mostrar-se mais severo com um ou outro dos seus filhos, mesmo se os tipos de punição variam conforme a idade.


Terceiro princípio, provavelmente o mais difícil de ser respeitado: não se deve punir sob o efeito de uma viva emoção. “Quando você sente a cólera tomar conta de você, procure um lugar isolado e fique sozinho por cinco minutos para se dar o tempo de respirar e tentar recuperar a sua calma”, conselha Stéphane Clerget, um psiquiatra infantil. “Caso a cólera for forte demais, o seu filho não mais irá o reconhecer, e ele sentirá medo de você”.


Princípio número quatro, o qual é muito controvertido: nada de castigos corporais, inclusive as palmadas nas nádegas. “A violência física não constitui uma resposta educativa, mas sim emocional”, considera o doutor Pleux. “Ela mostra que os pais perderam o controle da situação”. As palmadas simbolizam as tensões que existem em torno da educação. De um lado, a associação Nem Bofetadas Nem Palmadas está mobilizada para lutar pela sua proibição na França, conforme já fizeram doze Estados, membros do Conselho da Europa. Do outro, a União das Famílias na Europa reúne pais que reivindicam o direito de sancionar os seus filhos por meio de castigos corporais.


“Uma criança que é criada em meio ao terror das palmadas corre risco de se tornar um adulto que aceitará submeter-se à tirania ou, inversamente, um rebelde que nunca suportará nenhuma imposição legal”, considera, por sua vez, o doutor Clerget. “Além disso, os pais também se arriscam a condicionar a criança a mentir para se proteger. E eles se expõem, ao baterem num adolescente, a ver este último reagir da mesma forma, devolvendo os golpes”.
Philippe Jeammet, um antigo chefe do serviço de psiquiatria para adolescentes e jovens adultos no Instituto Montsouris, em Paris, se diz irritado com esta polêmica. “Todas essas tentativas que visam a colocar os pais na defensiva, proibindo-os de recorrerem às palmadas, despontam como bastante irrisórias”, considera. “Com a condição de não dar margem a excessos, esta punição pode vir a ser uma reação saudável num dado momento. Os seus detratores se concentram num detalhe, ao passo que mais importante é o fato de os adultos estarem recuperando a confiança e se sentirem autorizados a impor limites aos seus filhos”.


Entre educar sem punir e dar palmadas nos seus filhos, existe um vasto leque de castigos que já mostraram dar bons resultados, como a reparação, a privação, os pedidos de desculpas, entre outros. Eles apresentam a vantagem de terem um sentido para as crianças. “Se você se recusar a comer espinafre, vai ficar sem sobremesa”; “Você voltou para casa tarde demais: não vai sair com os seus amigos no próximo fim de semana”; “Você espalhou terra por todo lugar: pegue uma vassoura e ajude a limpar…”.


Para os mais novos, o simples ato de arregalar os olhos com ar bravo, elevar o tom da voz firmemente, sem, contudo, dar berros, pode ser suficiente. Vale também dizer-lhes que eles estão se comportando como molequinhos - se este for o caso -, o que pode também ajudá-los a progredirem.


Aliviar a sua culpabilidade


“As melhores punições”, considera o doutor Clerget, “são provavelmente a compensação de um erro ou a imposição de uma pequena tarefa de interesse familiar”. Elas fazem com que a criança consiga diminuir o seu sentimento de culpabilidade e ajudam-na a tomar consciência das conseqüências da besteira que ela cometeu.


Para os mais crescidos, as sanções podem ir desde a privação do dinheiro da mesada até a proibição de usar o computador ou de sair com amigos. Em contrapartida, é fortemente desaconselhado suprimir uma atividade útil, esportiva ou cultural, para o desenvolvimento da criança.


Além disso, para lidar com os adolescentes mais complicados, que não respeitariam as proibições, os pais podem encontrar uma solução na possibilidade de pedir a intervenção de um terceiro, um tio, um padrinho, uma avó, contanto que este seja respeitado pelo jovem recalcitrante. Quem sabe, esta pessoa de fora seja capaz de convencer aquele aprendiz de rebelde.


Mas, a necessidade de punir quando as proibições não são respeitadas não deve fazer esquecer de que educação passa acima de tudo pela confiança que a criança tem nos seus pais. É preciso tomar cuidado para não se deixar prender na armadilha de uma relação de conflito. É preciso manter-se atento para não deixar de felicitar, de incentivar a criança que respeita as regras e mostra que está fazendo progressos, e não hesitar a confiar-lhe responsabilidades, a valorizá-la. Isso porque a auto-estima pode ser gravemente prejudicada em crianças que teriam o sentimento de nunca satisfazerem aos seus pais.



Referência: Martine Laronche, Le Monde / Tradução: Jean-Yves de Neufville