
Esse seu "A família em desordem", lançado ano passado na França e agora aqui traduzido, é uma boa mostra disso.
Os avanços da tecno-ciência e dos costumes tornaram possíveis mudanças antes impensáveis no processo da reprodução humana. Lembremos os métodos anticoncepcionais - desde os seculares contraceptivos e o coitus interruptus, a prática do aborto, o controle de natalidade pela tabela Ogino-Knaus, as pílulas anticoncepcionais, o DIU, a inseminação artificial, a inseminação ín vitro com subseqüente implantação intra-uterina, a doação de esperma ou de óvulos, as barrigas de aluguel até, finalmente, a clonagem.
Essas técnicas provocaram uma revolução no próprio conceito de família, se pensarmos que por esse nome designamos a união, reconhecida e apoiada pela sociedade, entre um homem e uma mulher com fins de criar e manter os filhos.
Além dessas inovações tecno-científicas, os próprios costumes também mudaram quanto à família. Pouco resta da antiga família patriarcal, imutável, regida por um pai autoritário, quanto olhamos para as famílias de hoje - rompidas e recompostas muitas vezes. Mais ainda, cortando todos os laços com os costumes anteriores, pares homossexuais passaram a pleitear a adoção ou mesmo a paternidade ou maternidade, usando os novos recursos que prescindem da prática natural do coito entre homem e mulher.
Como ficam, dentro dessa nova realidade os papeis tradicionais de pai e mãe, de homem e mulher, a necessária gestão da autoridade na educação das novas gerações?
São essas importantes e instigantes questões que Roudinesco tenta responder em seu livro. O disparador de suas reflexões é a questão colocada pelo "desejo de família" expresso pelos homossexuais, coisa que considera surpreendente, quando lembra que até bem recentemente - pelo menos na França - a postura dos homossexuais era a de pleitear um "direito à diferença", quando contestavam e rejeitavam a família, considerada como o funesto lugar da opressão patriarcal, impedidora da liberdade sexual. A nova moral por eles apresentada é a da busca da normatização, uma forte vontade de integração, abandonada que fica a antiga postura que proclamava uma ruptura com a ordem vigente.
Para responder a essas questões, Roudinesco vai mesclar uma grande massa de informações derivadas da história, da antropologia e da psicanálise, de onde pinçarei alguns pontos referenciais.
Diz que Levy-Strauss estabeleceu que a família é encontrada em todas as sociedades humanas, organizando-se dentro das duas grandes ordens do biológico (diferença sexual) e do simbólico (proibição do incesto e outros interditos). Se até o finado da Idade Média ela era entendida em seu sentido mais extensivo, a família nuclear, tal como hoje a concebemos (pai, mãe, filhos) se impõe entre os Séculos XVI e XVIII. A família passou por três fases evolutivas: a primeira dita "tradicional", assegurava a transmissão do patrimônio e era regida pelo poder do pai, transposição direta, para o seio do privado, do direito divino dos reis reconhecido publicamente no regime da monarquia, estabelecida num mundo imutável; a segunda, fase "moderna", é regida por uma lógica afetiva, romântica, onde o casal se escolhe sem a interferência dos pais, procurando uma satisfação amorosa e sentimental, sendo que o poder e o direito sobre os filhos é dividido entre os pais e o Estado e/ ou entre pais e mães. Finalmente, a terceira, dita "contemporânea ou pós-moderna", aonde a transmissão da autoridade vai ficando cada vez mais complexa em função das rupturas e recomposições que a família vai sofrendo.
No mundo ocidental, a família "tradicional", submetida ao poder paterno, manteve-se por séculos (lembre-se às leis romanas sobre o pátrio poder, por exemplo), até o grande abalo da Revolução Francesa, que, ao propor um mundo laico, atinge a até então inatacável figura de Deus Pai e seus sucedâneos no poder estatal, os reis, que são dessacralizados e mesmo destituídos, enfraquecendo conseqüentemente seu equivalente no seio dos lares, os pais. Esse modelo familiar desmorona definitivamente no final do Século XIX.
A decadência do patriarcado causou na Europa um grande temor do feminino, antevia-se uma emasculação e uma feminização da sociedade. Produziu-se uma ideologia que satanizava a mulher, vista como fonte do caos e da destruição social, como a obra de Johann Jakob Bachofen bem ilustra.
É nesse clima que Freud pode produzir a psicanálise. Se na sociedade em geral, vivia-se a falência do poder paterno, Freud vem propor uma teoria do psiquismo humano na qual o assassinato do pai - realizado ou fantasiado, desejado - terá decisiva importância.
Em "Totem e Tabu" o assassinato do pai é um ato necessário, fundador da civilização, ato que instaura a lei que nos separa do mundo da natureza e nos introduz na cultura, o que possibilita a internalização dos interditos paternos. Vê-se como é complexa a proposta de Freud, pois ao mesmo tempo em que diz ser necessário o assassinato do pai, afirma que também é necessária sua permanência, embora que noutra condição - como a lei internalizada pelos filhos.
Como diz Roudinesco, Freud vai "inventar a família edipiana". De que forma? Vai ilustrar a complexa relação entre filho e pai com a figura trágica de Édipo.
Sabemos que as três tragédias de Sófocles em torno de Édipo - "Édipo Rei", "Édipo em Colona" e "Antígona" - são os momentos finais de uma historia mítica maior, a da trágica e amaldiçoada família dos Labdácidas.
Esta família foi fundada por Cadmo, que gerou Polidoro e este a Labdaco (o "manco"), que morreu quando Laio, seu filho, tinha um ano. Criado pelo Rei Pélops, Laio se comporta de forma indigna, ingrata, `claudicante' , com seu hospedeiro, ao violar homossexualmente Crisipo, seu filho, o que o leva ao suicídio. Como vingança, Pélops amaldiçoa a raça dos Labdácidas, condenando-a a extinção. Laio foge e casa com Jocasta, também de sua própria família. Deles nasce Édipo, cuja história todos conhecemos, e que gerará Etéocles, Polinice, Antígona e Ismene.
Conhecendo a linhagem familiar, vemos que Édipo nasce amaldiçoado, no seio de uma família condenada à destruição. Para Sófocles, Édipo de nada é culpado, é a vítima do destino.
Freud vai ignorar toda a história pregressa da família de Édipo e centrar-se no assassinato do pai e no incesto com a mãe - representantes dos desejos fundantes e reprimidos do inconsciente. "Pouco importa a mensagem de Sófocles: o que conta agora para Freud é a história do filho culpado de desejar sua mãe e de querer assassinar seu pai... Édipo será, portanto culpado não de ter cometido um assassinato, mas de ser um sujeito culpado de desejar sua mãe" - diz Roudinesco.
Esse recorte permite a Freud a criação de sua teorização do inconsciente, centrada no desejo incestuosa do filho frente à mãe. Assim, institui a abordagem clássica da terapia psicanalítica, que é a individual. Não se detém suficientemente, em minha opinião, sobre a realidade do inconsciente dos pais e, de maneira mais larga, de toda a família, como definitivos na constituição do sujeito.
Ou seja, Freud não elaborou um dispositivo terapêutico e teórico que incluíssem toda a família como objeto de observação psicanalítica. É diferente recortar o desejo de Édipo, vê-lo como o produto autônomo de um indivíduo - e aí o postulado da "pulsão" abre caminho para tanto - de entendê-lo dentro de um continuum familiar amaldiçoado, destinado à destruição.
Uma coisa é ver Édipo sozinho, outra é vê-lo como um membro dos Labdácidas. Se o víssemos desse segundo ponto de vista, entenderíamos todo o peso simbólico de seus antepassados e a forma como influenciaram decisivamente em sua vida. Afinal, Édipo, que significa "o de pés inchados" é um dos Labdácidas, a família dos "mancos". Nesse sentido, discordo quando Roudinesco diz que Freud "inventa" uma "família edipiana", pois o que está em jogo não é propriamente o dinamismo inconsciente de uma família e sim de um indivíduo, um único membro da família.
Esse déficit teórico freudiano é suplementado por desenvolvimentos atuais que se preocupam com os desejos inconscientes da mãe e do pai frente ao filho, tentam entender o lugar que o filho vem ocupar em seus mundos internos e a forma como tais desejos vão ser assimilados e internalizados pelos filhos, como sugere Laplanche com seu conceito de "metábole". Além do mais, saindo do enquadre terápico individual, abrem-se novas possibilidades de pensar analiticamente a família, com seus segredos, seus não-ditos, suas vergonhas, suas feridas narcísicas e suas maldições (Kaës).
A derrocada da figura do pai e o temor do feminino decorrente da crescente presença da mulher no espaço público tem um subproduto no corpo teórico da psicanálise: a teorização kleiniana, que, distanciando-se de maneira radical de Freud, centra-se inteiramente na figura materna, objeto único da pulsão e da fantasia do bebê, que a infla de tal forma que a faz perder toda realidade concreta. "Foi preciso esperar as contribuições de Donald Woods Winnicott sobre a mãe suficientemente boa (good-enough mother) e `extremosa comum' (ordinary devoted mother) para corrigir os excessos dessas clivagens maniqueístas que resultavam numa visão perversa ou psicótica das relações de parentesco"- diz Roudinesco.
Efetivamente, com os novos direitos decorrentes da luta feminista, as mulheres passaram a exercer um poder e uma presença muito mais forte na sociedade e na família, havendo mesmo nesta uma maternalização significativa.
Nesse contexto, estudos tornaram possível separar o "feminino" do "materno"; foi possível discriminar "sexo" (biológico) e "gênero" (costumes sociais). E se evidenciou algo antes totalmente reprimido, que era a questão da sexualidade feminina. Frente a essa questão, Freud tem sido sempre mal compreendido, pois ao postular o conceito de "complexo de castração" aponta para a incompletude de ambos os sexos e a fantasia narcísica de uma totalidade impossível.
Coincide com a diluição da figura paterna e fortalecimento da presença do feminino e do materno o aparecimento das novas conquistas da tecno-ciência médica. Elas tornaram possível o abandono da ordem procriadora, antiga base da família, fazendo surgir novas formas de parentalidade (o próprio termo já é uma novidade) antes impensáveis.
A total desconstrução do conceito de família decorrente da tecno-ciência levanta inúmeros problemas éticos, políticos, jurídicos, além daqueles da ordem da subjetividade.
Teria havido uma desumanização de processos tão fundamentais para a humanidade quanto à geração e criação de novos seres humanos? Teria o "zeitgeist'" deixado o avatar edipiano para assumir a feição narcísica? Como serão as famílias do futuro?
As possibilidades abertas pela tecno-ciência no que diz respeito à concepção de novas vidas são inusitadas e ainda é cedo para avaliarmos seus resultados. Mas devemos refletir sobre a necessidade de parâmetros éticos para a ciência. Ela não deveria ser deixada a seu próprio desenvolvimento interno, na medida em que ela pode criar situações intrinsecamente más e perversas, como a execução em massa de seres humanos seguindo modelos da linha de produção industrial, como nos campos de extermínio nazistas.
Retomando aquilo que foi o disparador para esse livro, a questão da paternidade de casais homossexuais, Roudinesco toma uma posição cuidadosa. Não endossa a maciça reprovação expressa por vários importantes psicanalistas franceses, mas também não nega a difícil situação desses casais homossexuais e de seus filhos. Ao citar os impressionantes relatos feitos por Leonard Shengold de abusos praticados em seus filhos por pais e mães de famílias "normais'", ela lembra uma obviedade que às vezes precisa ser repetida: ter pais heterossexuais não é garantia de ausência de sofrimento e traumas. Afinal de contas, até o presente, toda a louca humanidade assim foi procriada...
Roudinesco encerra com um certo otimismo, ao afirmar que a família humana se reinventa permanentemente, mantendo-se desde os inícios dos tempos, como uma instituição insubstituível para nossa própria constituição de sujeitos humanos.
Resenha do livro "A Família em desordem" de Elizabeth Roudinesco , Jorge Zahar Editor - Rio de Janeiro - 2003
por
Dr.Sérgio Telles setelles@uol.com.brPsicanalista do Departamento de Psicanálise de Instituto Sedes Sapientiae Escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO (1992 - Imago - Rio)
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